Esvaziamento

Mariana Monteiro
2 min readSep 22, 2020

E se você descobrisse que sua herança é um monte de lixo?

Ele andava por aí como se ninguém estivesse vendo. Puxando um pouco de uma perna, ajeitando o cabelo sem parar. Parecia atrasado, contrariado. Puto da vida, eu diria.

Era o metrô que não passava na hora. Ou passava vazio, em manutenção. Bem na hora do rush.

Também era o candidato, o resultado do jogo, uma espécie de prisão de ventre que lhe trancava a cara e os esfíncteres.

Vivia como quem diz aos sete ventos “Devo, não nego. Pago quando puder”. E é claro que a conta ia chegar, com 10% de acréscimo a quem lhe serve.

Viveu contrariado a maior parte da vida. Encontrava alegria no ouro líquido, que matava sua sede e sua fome ao mesmo tempo que colocava pra dormir aqueles fantasmas embaixo da sua velha cama.

Quando não embarcava na minhoca de metal recém chegada da China, ele ia caminhando com os pés batendo forte o chão, um de cada vez, com um pequeno delay entre as passadas. Descompassado.

A pisada era forte mas não mais forte quanto a de quem dividiu as calçadas com ele. Foi entendendo que tanta rapidez não era pressa, era fuga. E que cada obstáculo doía nele como uma fisgada de uma dor que já cessou em alguém.

De vez em quando ele até ria. Um riso envergonhado, contido, como quem sente vergonha da própria alegria. De vermelho e preto ele ia se misturando, fingindo costume, se deixando levar.

Ele chegou aqui à força, no forceps. Estavam esperando por ele como quem espera a correspondência. Mas não havia convites para festas ou jantares. Só contas a pagar, com o vencimento próximo e ameaça de juros, multa e o escambau.

Foi mesmo assim: nasceu pra pagar o pecado dos outros, parcelado à perder de vista. E lá ia ele, com sua mochila cheia de mágoas, desculpas e mau humor.

Ele ia fazer a mesma roda continuar girando. Como os ratos domesticados fazem em suas gaiolas: rodando, rodando, rodando. Moendo e remoendo. Mas não havia gaiola, assim como nunca houve colo, nunca nenhuma garantia a não ser que uma hora a grande cobrança chegaria.

Chegou pelos ares, assim como a poluição que lhe dava bom dia, todo dia. Fazendo muito barulho enquanto calava nossa boca e fazia os olhos e ouvidos perceberem com riqueza de detalhes aquilo que já não dava mais para ignorar.

Ele falhou.

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Mariana Monteiro

Jornalista, 32 anos. Renascendo pós golpe. Escrevo para marcar meu tempo no espaço. Contenho esperança. Crio um cão, sonhos e palavras. Sou feliz porque decidi!